quarta-feira, 5 de março de 2014

O doce diferido (Miguel Esteves Cardoso)




O doce diferido

Dizem que se é adulto quando se consegue lidar com a gratificação adiada. Ser-se infantil, em contrabirra, é querer tudo já e logo e imediatamente.

Mais adulto ainda é agradecer o adiamento. Quando eu era jovem ficava até às tantas a ver os óscares em directo. Há um lustro deitava-me e ficava a saber tudo pelos jornais da manhã.

Anteontem, finalmente, ganhei juízo. Vimos a passadeira vermelha na cama (percebendo que os actores andam às voltas, como num carrocel, na esperança que alguém os apanhe para uma entrevista) e às duas da manhã já estávamos a dormir.

No dia seguinte, ontem, fizemos gazeta. Não vimos jornais nem abrimos o mail nem falámos com ninguém que soubesse quem tinha ganho. Foi mais difícil do que pensávamos. Pusemo-nos a ver a cerimónia como se estivéssemos a assistir à transmissão.

As directas da juventude são substituídas pelos diferidos da maturidade. Eis o momento mais adulto: interrompemos os óscares para ir almoçar, longamente, à beira-mar. É verdade. Aguentámos muito bem o suspense e até à desastrosa escolha de melhor filme (para o 12 Anos Escravo) ainda tínhamos esperança que pudesse ganhar o Nebraska.

Os filmes eram reles mas a Ellen DeGeneres teve piada e o show pós-óscares de Jimmy Kimmel, com Kevin Spacey genial, foi o melhor de sempre. Da conversa geral da noite aprendi que os filmes "recordam-nos o que é sermos humanos". Isto no caso de não sermos um dos desgraçados que não conseguem esquecer-se dessa condição.

Miguel Esteves Cardoso


(Público, 4 de março de 2014)