quinta-feira, 31 de março de 2011

Bethânia e as virgens ofendidas (Inês Pedrosa)


Escritora portuguesa defende a importância do incentivo do MinC ao projeto de poesia da cantora na internet

Inês Pedrosa (publicado n' O Estado de S. Paulo)


Durante os breves dias que passei agora no Brasil, pasmei com a ferocidade da campanha contra um projeto de poesia de Maria Bethânia. O meu pasmo foi subindo de degrau em degrau a cada hora de cada um dos cinco dias e terminou num miradouro de indignação. Parece-me útil dar a ver aos brasileiros o panorama feio que os meus portugueses olhos divisaram – amo demais o Brasil para poder ficar fora dele mesmo quando ele me deixa fora de mim, mas temo que assim não aconteça com corações mais turísticos do que o meu.

O coro de virgens ofendidas com a verba que o Ministério da Cultura autoriza a captar para o projeto de Bethânia (R$ 1,3 milhão) é patético por diversas razões, a primeira das quais é a suposição cândida de que, a não ser investido na divulgação de poesia de língua portuguesa a que Bethânia se propõe, esse dinheiro seria canalizado para escolas, hospitais e o escambau. Verdade seja que a lista dos projetos aprovados pelo MinC inclui muita coisa que, vista de fora, me parece o escambau. Em Portugal, a Lei do Mecenato não funciona, porque o conceito de desenvolvimento através das artes ainda não conseguiu furar a massa cinzenta dos empresários lusitanos. Por isso, os apoios à cultura saem diretamente do bolso dos contribuintes, o que os torna sempre polêmicos e sujeitos à conspiração das invejas organizadas – a mais eficiente organização do país.

Eu tinha a ilusão de que o Brasil não era assim – via o Brasil virado para o futuro, incompatível com o ressentimento. Ainda quero ver, porque o Brasil onde eu moro e quero cada vez mais morar é povoado por artistas que se inspiram mutuamente, estudiosos ousados, enfim, gente que não perde tempo a envenenar-se e a envenenar os outros. Pobres puritanos da moral alheia: a grana que patrocinará Bethânia nunca serviria para pagar outras coisas. Por quê? Porque Bethânia não é uma coisa qualquer. O que ela faz tem repercussão. Possui um talento e uma voz únicos. Aguentem-se.

Por que será que só o projeto de Bethânia é sujeito ao escrutínio da maledicência? Porque Bethânia é uma estrela – de fato. Enche quantas vezes quiser as maiores salas de espetáculos de Portugal, da Europa e de várias partes do mundo. Por que o Ministério da Cultura do Brasil a subsidia? Não: porque tem um percurso internacionalmente reconhecido. Como cidadã da gloriosa pátria da língua portuguesa – a única pátria em que, tal como Fernando Pessoa, me reconheço -, agradeço-lhe diariamente o seu trabalho de muitas décadas em prol da poesia e dos poetas desta língua, de Pessoa a Guimarães Rosa, de Vinicius de Moraes a José Régio, de Sophia de Mello Breyner Andresen a João Cabral de Melo Neto. Se me tornei, ainda adolescente, leitora de José Régio, a ela o devo. O meu fascínio por Pessoa começou com a voz dela. E foi dela que recebi o primeiro estímulo para a descoberta da sublime literatura brasileira. Não há muitos cantores populares por esse mundo que se dediquem, de um modo contínuo, a este trabalho pioneiro e pedagógico. Penso que a visível subida do nível cultural do Brasil nas últimas décadas deve muito a Maria Bethânia. E tenho a certeza que a literatura portuguesa tem uma dívida imensa para com ela – toda a minha geração foi tocada pelos seus poetas, mesmo ou sobretudo quando, aos 20 anos, ia ouvi-la apenas para encontrar consolo para a vertigem das paixões mal sucedidas.

A 8 de março de 2010 fui ao Rio para, em nome da Casa Fernando Pessoa e em parceria com o Instituto Moreira Salles, galardoar Maria Bethânia e Cleonice Berardinelli com a Ordem do Desassossego, então instituída. Quisemos que a primeira atribuição dessa Ordem fosse uma homenagem ao Brasil e a essas duas heroínas da divulgação da obra de Fernando Pessoa. Pouco depois, Bethânia foi a Portugal fazer um show e contatou-me, dizendo que queria oferecer um recital de poesia de língua portuguesa na Casa Fernando Pessoa. E ofereceu – sim, gratuitamente, escandalizem-se, oh virgens! – um espetáculo belíssimo, concebido, encenado e realizado por ela, aliando interpretação e canto, com uma inteligentíssima seleção dos maiores poetas de Portugal e do Brasil. As paredes da Casa iam estourando, tal a multidão e o deslumbramento.

Nessa ocasião, Bethânia falou-me da sua vontade de levar pelo interior do Brasil e de Portugal um conjunto de espetáculos desses, exclusivamente dedicados à poesia. Que Bethânia ou alguém próximo dela (porque Bethânia nem sequer é praticante da religião das redes virtuais) tenha acrescentado a esse projeto a circulação dos poemas ditos na internet, parece-me uma excelente e eficaz ideia. Sim, opulentos invejosos, já há muita poesia na net – mas não dita e encenada por Bethânia. A voz e o critério dela chegam mais longe, movem mais almas – é isso que não se lhe perdoa. Caetano já o disse, numa crônica coruscante, no Globo. Mas eu quero repeti-lo, porque não sou irmã dela – amo-a, sim, como comecei a amá-lo, desde a mais tenra juventude e sem os conhecer de parte alguma nem saber onde ficava Santo Amaro da Purificação, de onde ambos vieram, sem patrocínios nem padrinhos, para acrescentar luz e força às nossas vidas. Amo-os porque as suas vozes e os seus dons criativos me fizeram e fazem acreditar que o mundo pode ser um lugar mais belo e mais sábio. O Brasil está a dar certo porque eles – e muitos outros como eles, e uma multidão com eles – assim o quiseram. E isso só não vê quem não quer – ou não é capaz – de ver.


Para além de ser escritora e jornalista, Inês Pedrosa  é a diretora da Casa Fernando Pessoa desde fevereiro de 2008.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Homenagem a João Villaret

João Villaret foi um grande ator e um inigualável declamador, que enchia salas de espetáculos declamando poesia e falando de poetas, sem nunca olhar para um papel. Morreu no dia 21 de Janeiro, há 50 anos. Alguém se lembrou de criar um site dedicado a ele. Conta ainda com pouca coisa, mas que merece ser visitado e, claro, ouvido.

Para começar, eis alguns curtinhos. Mas, claro, ouvi-los todos é fantástico.
  • Adivinha
  • Balada da neve
  • Fado falado
  • Liberdade
  • O menino de sua mãe
E o incontornável...
  • Cântico negro
Consta que após a leitura deste poema, no Teatro de S. Luís, recebeu uma ovação ininterrupta de perto de 30 minutos, que constitui ainda hoje um recorde nacional em qualquer tipo de espectáculo.