segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Pela abolição do verbo «acreditar»



Não há qualquer possibilidade de vida humana em sociedade sem confiança.
Eu confio que na minha viagem do Porto a Lisboa, de comboio, este não vai descarrilar. Confio que o avião onde viajo não vai cair e que o piloto sabe o que está a fazer. Confio que o médico que me vê sabe diagnosticar a minha doença e encontrar para ela o melhor tratamento. Confio que o meu inquilino me vai pagar a renda no fim do mês, com cujo produto vou pagar a conta da mercearia que o merceeiro me fiou, confiando que eu sou de confiança.
A confiança é um valor absolutamente fundamental e imprescindível.
Mas a confiança não é cega nem irracional. Ela funda-se na experiência. Eu confio que o comboio não descarrila e o avião não cai, porque é isso que normalmente acontece. Os carris foram montados e os aviões foram construídos por gente que conhece os princípios do carrilamento e do voo. Eu confio no médico, porque ele recebeu formação específica para me tratar. E, se tiver a sanita entupida, já não confio no médico; chamo o picheleiro.
Claro está que, pese embora a minha confiança, o comboio pode, de facto, descarrilar, o avião pode cair, o médico pode matar-me e o meu inquilino pode barricar-se dentro de casa sem me pagar a renda. A confiança não se traduz num critério infalível de certeza matemática na acção, mas num critério de desenvolvimento apenas normal e expectável dos acontecimentos.
E é aqui que a a confiança se afasta da simples fezada, consubstanciada no uso gratuito do verbo «acreditar».
Falível embora, o «confiar» tem um fundamento racional e razoável: a experiência passada, individual e colectiva.
Ao invés, o «acreditar» gratuito não tem fundamento algum. Exprime um mero desejo, uma esperança sem razão que um futuro que não controlamos se realize em conformidade com aquilo que nos convém.
Assim, ao apostar nos números 4, 7, 27, 29 e 32, do euromilhões, por exemplo, ninguém diz: «eu confio que é esta a chave do sorteio». Essa confiança seria absurda. Aquela chave tem tanta probabilidade de sair como qualquer outra. O apostador acredita, sim, por simples fezada cega, que a dita chave vai ganhar. Tem esperança que assim seja; anseia que assim seja. Tem uma fezada, uma crença injustificada e injustificável. Em média, uma vez em cada cem milhões, a fezada corre-lhe bem.
É por isto tudo que é tão preocupante ver os telejornais hoje em dia. Neles – que são o espelho da sociedade em que vivemos – o verbo «acreditar» domina do princípio ao fim. Há um regresso absoluto ao pensamento mágico, pré-racional e mitológico.
Na conferência onde apresenta o último conjunto de medidas de austeridade, recessivas e geradoras de falências crescentes, o ministro das finanças jura acreditar que o desemprego vai começar a decrescer em breve. No jogo que vai disputar com o Barcelona de Guardiola e Messi, o treinador da equipa de quinta categoria, com os seus dois melhores jogadores lesionados, protesta acreditar que o seu clube vai seguir em frente na eliminatória. À porta do hospital onde entrou com a cervical fracturada e metade do cérebro derramado na berma da estrada onde se despistou a duzentos à hora, os fãs do cantor da moda declaram, diante do êxtase orgástico do repórter de serviço, acreditar que o sinistrado se vai salvar e que ainda irão assistir a muitos dos seus concertos.
Todos sabem que, nestes casos todos, o acreditar não tem pés nem cabeça, não traduz qualquer sentimento razoável ou racionalmente fundado e que o expectável é o exacto inverso do acreditado (salvo um milagre que, como explicava Chesterton, por ser milagre, não anda por aí a acontecer por dá cá aquela palha).
Mas, incapazes de controlar o destino e sem meios que lhes permitam, com um mínimo de probabilidade, conduzir os acontecimentos aos resultados desejados, os crentes acreditam que a fezada os salva e depositam supersticiosamente no verbo «acreditar» a força mágica de produzir os efeitos que a confiança não inspira nem pode, com substância, inspirar. Como os nossos primitivos antepassados, com pensamento mágico, pré-lógico, acreditam que, se acreditarem e declararem bem alto acreditar, a sua fezada carregará energias propiciatórias e concitará o favor dos deuses que, contra toda a evidência, lhes prodigalizarão os favores desejados.
E o pior é que estes idiotas com mentalidade das cavernas exibem sempre muito ufanos a sua fezada, como se de uma qualidade moral que os tornasse superiores se tratasse. Têm um orgulho enorme nela e sentem um infinito e arreigado desprezo por aqueles (os cépticos e os pessimistas, como eles com horror e nojo os classificam) que os desmascaram e identificam como aquilo que realmente são: uns idiotas.
E pior de tudo, ainda, é que o paradigma é deles. São eles, os idiotas supersticiosos, os donos do discurso e é o discurso deles que faz hoje o mainstream que conduz por via directa ao poder. Basta ver os anúncios aos produtos bancários do momento, onde tudo é acreditar, tudo é fezada, tudo é engano.
É tempo exigir um retorno à racionalidade. É tempo de expulsar a estupidez do discurso e abolir dele o verbo «acreditar», remetendo de novo o seu uso para o domínio exclusivo da transcendência, da verdade revelada, onde impera, não a fezada, mas a fé esclarecida, acessível não pela enunciação ritual de fórmulas mágicas e supersticiosas, mas pela razão humilde e recta, iluminada pela graça do Espírito Santo.
PS – Acabei de escrever este post por volta das 13:20 h do dia 8 de Maio de 2012. Às 13:22 h ligo a televisão na SIC Notícias. As primeiras palavras que ouço são estas: «Os Estados Unidos acreditam ter impedido um atentado da célula da Al-Qaeda no Iémen…»

António Conceição

Publicado no blogue Funes, el memorioso  (da memória, porque memória é tudo o que não é real.)


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