domingo, 24 de novembro de 2013

O povo pede desculpa por ainda não ter escolhido a violência (José Manuel Fernandes)


Apesar de tanta gente antecipar a violência popular, o país parece ter descoberto uma sabedoria dos tempos difíceis

Se os tempos fossem outros, o “encontro das esquerdas” promovido ontem por Mário Soares na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa teria sido convocado para um espaço bem mais amplo.

Se os tempos fossem outros, a criação de um novo partido que afirma a ambição de federar as esquerdas não teria decorrido numa sala meio vazia de um cinema de Lisboa. Se os tempos fossem outros, os quase 500 dias de protestos e greves no sector público de transportes já teriam desembocado em múltiplas greves gerais capazes de paralisarem o país e não de ficarem quase só pelas empresas e pelos funcionários do Estado.

Mas então por que é que os tempos não são outros? A acreditar nas previsões dos mais avisados políticos e dos mais ponderados senadores, o país devia estar a ferro e fogo. Pessoas aparentemente tão diferentes como Mário Soares – que há mais de um ano escreve sobre “a violência que aí vem” e esta quarta-feira anunciou que “os portugueses não iam ficar parados” – ou Januário Torgal Ferreira – que entendeu que a melhor forma de criticar o Governo era chamar-lhe “profundamente corrupto” – convergem numa mesma inquietação: o povo está muito parado, muito apático. Talvez por isso, como se cantava noutros tempos, o que seja preciso “é agitar a malta”.

Por outro lado, se olharmos para uma banca de jornais ou nos sentarmos para ouvir um telejornal, o rol de desgraças e malfeitorias é tão interminável que se entende a incompreensão de tantos dos nossos opinadores por os tempos não serem outros. Num país onde tudo é sempre apresentado como mais um cataclismo social, custa a entender por que não surgiu ainda uma moderna Carbonária.

Não sei, ninguém sabe, se o nosso país vai conseguir atravessar estes dias difíceis sem episódios com a gravidade de alguns que já ocorreram noutros países. Nunca se está livre de um episódio, que até pode ser isolado – como foram, esta semana, os tiroteios em Paris –, atear tempestades maiores. Mas julgo sinceramente que não é o cenário mais provável. Mais: isso não decorrerá dos nossos míticos “bons costumes”, antes de existir a percepção, mesmo que difusa e poucas vezes assumida, de que houve um tempo de fartura (relativa) que passou e que agora há um tempo de contenção que durará vários anos e vários governos.



Recentemente, a propósito da fraca afluência à que deveria ter sido a terceira grande manifestação do movimento Que Se Lixe a Troika, não faltou quem culpasse o medo pela ausência das esperadas multidões. Mas medo de quê? Medo do Governo? Não faz sentido. Medo de perder o emprego? Mas quem o perderia por desfilar a um sábado, dia de descanso? Medo do futuro? Sem dúvida. Mas não deveria esse medo do futuro convocar ainda mais manifestantes?

Talvez seja esta última interrogação a mais pertinente. Se há medo do futuro, há talvez ainda mais medo das alternativas aos dias que correm. Até pelo que elas omitem. Tomemos um caso desta semana. Mário Soares entendeu que era chegado o momento não apenas de pedir a demissão do Governo, como a saída do Presidente da República. Não faço ideia, e julgo que ninguém fará, como quereria que se gerisse depois o longo interregno, que duraria muitos meses, de incerteza política e caos institucional. Com um primeiro-ministro tecnocrata? Com um Presidente designado pelas Forças Armadas? E quem negociaria com a troika? Os partidos, cada um por si? E seria que o PS devia ficar de fora, para não legitimar nada? E como iria Portugal conseguir os mais de 20 mil milhões de euros de que necessita para financiar o défice de 2014 e pagar os empréstimos que vencem ao longo do próximo ano? Incumpria, declarando bancarrota?

Ao mesmo tempo, o PS, apesar de alguns esforços para formular uma política mais coerente e de algumas tiradas sobre “responsabilidade orçamental”, praticamente só apresentou na Assembleia propostas de alteração ao Orçamento que fariam aumentar o défice de 2014. É simpático, mas não é suficientemente sólido para que António José Seguro seja levado a sério.

Faço parte dos que sentem – dos que sabem – que “não há dinheiro”, mas já não sou dos que defendem que não há alternativa. Alternativas há sempre, é preciso é saber se são melhores. O que me custa ver em Portugal é pouca gente assumir que todas as alternativas têm também os seus custos. Podemos, por exemplo, defender que há cortes nas despesas do Estado que são intoleráveis – mas então devemos também dizer como fazemos crescer as suas receitas, e não vale falar das quimeras do crescimento económico, pois esse quase desapareceu desde a viragem do milénio e não regressará apenas pondo o Estado a gastar mais dinheiro. Depois de ter comprado tantas ilusões durante tantos anos e tantos ciclos eleitorais, o povo quer mais, não se satisfaz apenas com propostas de acabar com a austeridade – porque não acredita nelas.



Mais do que o medo ou a desconfiança face às alternativas, julgo que a razão principal para a “apatia” que tanto inquieta uma parte dos nossos intelectuais está na consciência de que alguma forma de austeridade – ou de contenção e poupança, se preferirmos as palavras que os alemães usam quando se referem a austeridade – fará parte do nosso destino nos próximos anos.

A forma como os portugueses têm vindo a alterar os seus padrões de consumo ajuda-nos a perceber este novo estado de espírito. Um estudo de mercado muito alargado elaborado no final do ano passado indicava, por exemplo, que havia entre os consumidores aquilo a que os especialistas chamaram um novo “frugalismo”. Não se adica apenas do que não se tem dinheiro para comprar, abdica-se do que se pensa que é supérfluo. Isso acontece tanto nas escolhas feitas nas prateleiras de um hipermercado como no recurso a mercados de bens em segunda mão (como nos sites de leilões). E não corresponde apenas a uma alteração de comportamento, corresponde também a uma nova atitude anticonsumista que é verbalizada nas entrevistas. Isto significa que tais alterações de comportamento não são tão sofridas como se deduziria apenas da leitura muitas vezes alarmista da imprensa e dos fazedores de opinião.

Outro aspecto importante é a forma como os sacrifícios são percepcionados. Por exemplo: fala-se sempre de “cortes nas pensões”, nunca se refere que a maioria esmagadora das pensões não sofreu até hoje nenhum corte pela razão simples de que são demasiado baixas. Outro exemplo: apresenta-se como uma catástrofe social os cortes a partir de 700 euros na administração pública (cortes que também eu lamento profundamente começarem nesse nível salarial), mas esquece-se que metade dos salários no sector privado é inferior a 650 euros, o que significa que esses trabalhadores não se chocam tanto como as elites com os cortes acima dessa fasquia. Mais: até são capazes de achar que assim se repõe alguma equidade.

Como dizia o Herman José, “a vida dos pobrezinhos é um mistério”, e neste país há muito mais rendimentos realmente baixos do que aquilo que a alta classe média imagina. Essa distância ajuda a perceber por que tantos não entendem por que é que o povo ainda não encontrou uma nova Maria da Fonte. Essa distância e a percepção da maioria que, mesmo sendo estes dias difíceis, há alguma coisa que pode perder (o apartamento nos subúrbios, o carro em terceira mão). Ao contrário dos mitológicos proletários de Marx, que só tinham a perder as suas cadeias…

José Manuel Fernandes no jornal Público (22-11-2013)



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