terça-feira, 9 de setembro de 2008

Andamento Holandês (Vitorino Nemésio)


Num poema datado em 1969, “A caminho do Corvo”, Vitorino Nemésio (1901-1978) escreveu:

A minha vida está velha
Mas eu sou novo até aos dentes.


Em 1963, numa viagem à Holanda, Nemésio conheceu uma rapariga holandesa por quem se apaixonou e fruto desse amor é a série de 14 poemas intitulada "Andamento holandês", que foi publicada em 1976 (Sapateia Açoriana, Andamento Holandês e Outros Poemas). Reproduzimos aqui o primeiro e o sexto desses poemas.

Numa entrevista à professora Fátima Freitas Morna perguntam-lhe: "Num momento em que se fala tanto da poesia da experiência e do real, não deixa de ser curioso reflectir-se sobre essa espécie de 'mito comum'...", ao que ela responde: "Se calhar a indagação metafísica surge num ou dois dos poetas Nemésio, mas seguramente está ausente em muitos outros que se interessam pelo tempo real, tempo de coisas. Nemésio tem aquela modernidade espantosa de escrever nos anos 60 como poetas dos anos 80 virão a escrever, captando o pormenor da dimensão voluntariamente prosaica, na experiência de vazar o quotidiano. O Andamento Holandês é, nesse sentido, profundamente prosaico."


1.

Desenho a Holanda cor de Delft
E é minha a água simples de uma mão
De quem não digo nem às aves a maneira
Nem nome ou osso:
Só que a conheço pelo azul que posso.

Um dia (ou «era uma vez», dizia o outro),
Um dia me levaram minhas mágoas,
Como já Bernardim, às longes terras,
Renovado Camões a Guardafui:
E um aceno bastou de porcelana
Já para alguns jacintos alinhados
Na janela fechada do que fui.

Esperam rosa ou estrada os que adormecem,
O sono é sua forma a linho em branco:
Só eu tiro de mim a flor de Holanda
Com a força da graça recebida
E um pouco de bretanha ensanguentada:
Não por tristeza aprendida
Ou maneira de enfermagem,
Mas por que sangre em copa esta Tulipa
Na neve diluída da viagem.

29.1.1963


6.

Comprei um chapéu na Frízia,
Uma garrafa em Utreque...
(Mas esta quadra não tem braços!
O amor voou).

Comprei um frasco em Utreque,
Rum de Jamaica na Frízia...
(Mas esta quadra tem asas,
Que o amor voltou!).

Genebra! Dêem-me genebra!
Quero esquecer, feliz que eu sou!

3.2.1963


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