sábado, 29 de março de 2008

Mário Dionísio e as formas de tratamento


O seguinte excerto pertence a um livro de Mário Dionísio, O Meu Reino (Se o Tivesse) por Um Cavalo de Pau (Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1986).

Andei tantos anos lá por fora! Foram tantos, na verdade, que quase me esqueci de alguns usos e costumes da terra onde nasci, a minha pátria.


Com efeito! Os franceses governam-se com um tu e um vous, um Monsieur, um Madame, um Mademoiselle e já está. No dia-a-dia, digo eu. Os povos de língua inglesa (esses então!) resolvem tudo com um bendito you. Ou pouco mais. Até os espanhóis, tão dados ao saracoteio, além do tu, se ficam normalmente por um bom e expressivo usted, como um remate de frenéticas castanholas: chega bem. Só nós - pobres de nós!, ruminando ou escoicinhando, salvo seja, nesta terrinha esguia entre a Europa e o mar -, nos agarramos a uma ensarilhada gama de fórmulas obsoletas, ou que as­sim me parecem, no nosso convívio diário. Gama tão subtil e caprichosa que nem sempre nós pró­prios sabemos qual escolher. Será preciso dizer mais? Além do «tu», que é da ordem natural das coisas, há o «vós» (o solene e untuoso «vós»: pensastes, quiserdes, julgaríeis), já quase morto, o coitado, mas ainda estrebuchando com vigor, o «vocemecê» ou «vomecê», o agora universal «você», ainda não há muito recebido à patada: «Você é estrebaria!»


E o «Senhor», o «Senhora», o «Menina», o «Dona», o «Senhora Dona», o «Vossa Excelência» ou «Vocelência» ou «Vossência», o «Excelentíssimo Senhor », o «Excelentíssima Senhora». E, ainda, o «Excelentíssima Senhora Dona», o «Ilustríssimo Senhor», o «Vossa Senhoria». Estará a lista completa? O «Senhora», «Senhora Dona» ou só «Dona» já me puseram, e por mais de uma vez, em situações embaraçosas. Que sempre corrigi a tempo por uma espécie de intuição que só posso atribuir a profundas ligações de consaguinidade. A vendedeira de hortaliça do mercado onde cá em casa se abastecem normalmente é a senhora Josefa. Claro. Não a D. Josefa. E nunca por nunca ser senhora D. Josefa. A proprietária da lojeca onde compro os jornais e os cigarros, já não poderei eu tratá-la por senhora Margarida (incorrecção das grandes), mas por D. Margarida, prova de distinção, ainda que modesta. Um est modus in rebus. Longe, portanto, de senhora Margarida, mas também de se­nhora D. Margarida, tratamento a que ela não tem de aspirar. E a sua vizinha do lado, esposa dum funcionário das Finanças ou lá que é, só legitima­mente pode ser senhora D. Catarina. Não trabalha. Só D. Catarina implicaria excessiva ou menor consideração. E senhora Catarina, nem brincando. Isso era grosseria de se levar com a porta na cara.


Toda a gente me diz que nos últimos anos (de algo terá servido o 25 de Abril) está em curso uma certa evolução. Muito lenta, claro está. Nisto, como em tudo, um sonolento arrastar de caracol. [ ... ]


E o «doutor», meu Deus! Esse banal e tão por­tuguês «senhor doutor»? Essa leitura da abrevia­tura por contracção («dr.») do grau de licenciado, que meio país continua a cobiçar? Quem não quer ser «doutor», ainda que só «dr.» - vantagens do código oral sobre o código escrito? Quem não fará tudo para isso, os pais empenhando o que têm e não têm, os filhos estudando, claro, ou inventando mil processos de irem fa­zendo cadeiras e mais cadeiras, até obterem o sagrado diploma que da jus ao desejado tratamento? Porque —isto me espanta mais que tudo—, no país de que estive ausente tanto tempo mas é o meu país (a gente pode andar lá por fora a vida inteira mas não quer outra pátria), tal título continua a proporcionar benesses que o simples “senhor” nunca deu nem dará. A pesar —é notável!— da abundância já inflaionária daqueles que o usam. Facilita coisas, abre portas, encurta ou alarga prazos. [...]


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