quinta-feira, 5 de julho de 2007

A tradução


É fado dos bilingues estarem sempre a ser convidados para traduzir de uma língua para a outra. Costumam recusar - e não é por preguiça. É por causa de uma lei da tradução que é tão injusta como agonizante: a chamada Penalização Espertalhona. Para democratizar o conhecimento e proteger a ignorância, esta penalização aplica-se proporcionalmente: quanto mais bem se conhece uma língua, mais difícil é traduzi-la. Temos assim que me esmifro todo para traduzir um pequeno poema de inglês para português, mas vingo-me nas línguas que mais violentamente desconheço (o hebraico e o japonês, por exemplo), que traduzo lindamente, com o maior dos desplantes e disparates. Na tradução, saber é não poder e poder é não saber. Quando se sabe é tão dolorosa a consciência do que se perde - e, mais grave ainda, do que se acrescenta - que mais vale estar quieto. Se cada língua já é difícil para ela própria (e, no caso da literatura que vale a pena, consegue erguer-se por tirar partido dessas dificuldades) fazer falar uma através de outra é uma trabalheira destrutiva e angustiante. O corolário dessa fatalidade é óbvio: quanto mais bem escrito numa língua, mais mal escrito terá de ficar na outra. Quanto mais se estiver a dizer, menos se dirá. E quanto menos, mais. A Penalização Espertalhona não perdoa. A bem ver, só deveríamos traduzir maus livros e coisas que já na língua original não tinham ambição nem importância. Quanto melhor conhecemos uma língua, mais as traduções dela são insuportáveis. Quando é para ler, não faz mal porque se lê no original. Mas quando é para escrever, é o estar-se sempre a ler no original que nos parece música e faz sofrer com a macacada da língua segunda. A tradução é uma conveniência: existe porque não conhecemos outras línguas. É filha da ignorância e vive dela. Há que reconhecê-lo e engoli-lo. Paciência. O pior que se pode fazer é confortar e celebrar essa ignorância através das anedotas do costume, a começar pelas tais traduções que «até são melhores do que o original». São exactamente como os espumantes portugueses muito específicos que são melhores do que o «Champagne» muito em geral. Bebem-se mas não se comparam.

Miguel Esteves Cardoso

Sem comentários: