segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

A Memória das Palavras (José Gomes Ferreira)

José Gomes Ferreira (1900-1965) foi autor de uma vasta obra (poesia, ficção, contos, memórias, ensaios, traduções…, e houve também um Gomes Ferreira compositor!).

Os seguintes excertos foram tirados de A Memória das Palavras - ou o gosto de falar de mim (1965), e neles assistimos ao contraste entre uma história que Gomes Ferreira escrevera pelas alturas do liceu e um episódio decorrido na sala de aula: foi aí que um professor por ele admirado fez muito mais do que lhe ensinar geografia.


(…) duas histórias escritas na infância e bem esclarecedoras. A pri­meira redigi-a (é o termo escolar exacto) na Sala de Estudo do Colégio Francês que frequen­tei até os 13 anos.
(…) Tratava-se de uma espécie de romancico intitulado O Miserá­vel com um entrecho à primeira vista tolo. Senão leiam: «um ladrão salta as grades do jardim dum palácio onde se lhe deparam duas crianças a brincar na relva. Aponta-lhes a pistola e intima-as: ‘vão lá dentro ao cofre do pai e tragam-me todo o dinheiro que encontrarem’. As crianças amedronta­das obedecem e não tardam a reaparecer, aos saltinhos, com dois braçados de notas de que o ladrão se apodera, ávido. Mas quando se prepara para se retirar, eis que o salteador pára de súbito, surpreendido, a contemplar a pureza doce das crianças...

E então, num repente lívido, saca da pis­tola e mata-se».

Vá, riam! (Eu também rio com gosto). Riam às gargalhadas! Riam desta obra-prima que, para a minha mentalidade in­fantil, possuía tal significado de arrepio de beleza que ainda há instantes estremeci, ao recordar-me do pobrezinho do Miserável a autocastigar-se com um tiro absurdo na cabeça, sabe-se lá bem porquê, possivel­mente com saudades da inocência... (...)


(…) e evocar outro mestre inolvidável: o Dr. João Soares.

Professor excepcional, o que ainda hoje sei de geografia ele mo ensinou — e com que fantasia estuante!, com que perpétuo inventar de mnemónicas que nos diver­tiam às gargalhadas espectaculares!

Mas para além de leccionador de conti­nentes, países, serras, portos, capitais, povos e costumes, os meus olhos infantis, sequio­sos de mitos, divisavam nele mais alguma coisa do que um educador vulgar. Um forjador de caracteres, ao mesmo tempo severo e alegre, enérgico e bom.

Estou a recordar-me do entusiasmo e do tacto com que nos falou da nova bandeira, verde e vermelha — em Dezembro de 1911 infiro eu —, hasteada em frente, na torre da Igreja dos Anjos. E da intervenção mode­lar com que puniu a burla de eu lhe ter apresentado como meu um mapa da Eu­ropa, desenhado e colorido pelo Alberto Miranda.

O Dr. João Soares descobriu logo a falca­trua ingénua (havia classificado o mesmo mapa pouco antes) e muito sereno, como se não desejasse humilhar-me diante dos meus companheiros, pronunciou apenas meia dúzia de palavras duras e magoadas, duma simplicidade aterradora: «És um dos meus melhores alunos. Tentaste intrujar-me. Não te merecia isso. Feriste-me muito. Vai sentar-te e medita no caso».

Mais nada.

Desfiz-me em lágrimas, eu, o pequenino José Ferreira, já autor de O Miserável que, ao ver a sua inocência perdida, dera um tiro na cabeça.

E por falar em República, não tarda muito e estamos a comemorar um século de República Portuguesa. Foi pena a nossa ter acabado como infelizmente acabou.

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